quinta-feira, 11 de agosto de 2011

"Porque há o direito ao grito. Então eu grito."

"Porque há o direito ao grito. Então eu grito."

Clarice Lispector

(Para quem não viu o filme vale ver-- se não viu: Estamira)

ESTAMIRA, PRESENTE!


Curitiba - 28/07/11

Ontem a tarde (27 de julho de 2011) Estamira Gomes de Souza, mulher negra da classe trabalhadora, catadora de lixo no Aterro do Gramacho (Rio de Janeiro) nasceu ao contrário. Tinha 72 anos e morreu cansada, mal cuidada e principalmente: não ouvida (paradoxalmente tão escutada no mundo inteiro). A protagonista do filme que leva seu nome, dirigido por Marcos Prado e lançado em 2004 agonizou por horas no Hospital Miguel Couto, na Gávea, desassistida pelo SUS e incapaz – como a imensa maioria dos trabalhadores – de comprar sua assistência em um hospital particular.

Os trocadilos apontam que a razão de sua morte se chama 'septicemia', uma infecção generalizada. Poderiam dizer que por ter transtornos mentais,tamira deveria ter sido assistida em um asilo, ou um hospital/hospício psiquiátrico para que de lá não saísse e morresse em paz, longe do lixo, das moscas, longe da família, longe daquele mar que lhe era tão importante. Do outro lado, os que acreditam cegamente nos governos, acreditam que a construção da rede de atenção psicossocial substitutiva à lógica manicomial está consolidada, amplificada e atuante. Não desconsideramos os avanços da instalação da rede, determinada pela lei 10216/2001. Mas, como Estamira nos alertou: existe esperteza ao contrário, não inocência.

De toda forma, Estamira passou sua vida em pé, trabalhando, replicando sua existência dentro dum lixão, desatenta aos levantes manicomiais de empresários-da-saúde-mental que discorrem trocadilos sobre técnicas arcaicas repaginadas, assistência integral, novos medicamentos, cuspindo cifras.. Alheia aos professores de Psicologia que passam o filme nas aulas e todos saem das salas com mal estar, surpresos, com pena. No ano que vem, uma nova turma assistirá sua história. Tudo bem: esta arte nos permite a distância, a contemplação, o não envolver-se e o não implicar-se.

Escutamos Estamira e observamos mais uma que sofre numa massa de trabalhadores negros, homens e mulheres que apodrecem todos os dias. Estamira é apenas mais uma entre os milhares de loucos da classe trabalhadora que já não valem mais nada ao sistema do capital e que por isto – e só por isto – são jogados no lixo para se confundirem ao inútil e ao descuido nos aterros e favelas do país.

O cinismo deste sistema traveste seu discurso delirante, denunciativo, agressivo e violento em “poesia”, “uma forma atípica de expressão”, “obra de arte”. Esta forma de arte não nos importa. Não queremos lembrar de Estamira apenas quando seu filme recebe mais um prêmio internacional. Acreditamos que não basta lamentar sua morte em cento e quarenta caracteres, num pio. Reivindicamos a vida e obra produzida ao longo dos dias de vida de Estamira. Com todos os seus direitos humanos negados, todos os serviços de saúde de má qualidade, sua péssima condição de moradia, seu trabalho precarizado, a educação negada. Seus e de todos os trabalhadores.

Não nos interessa a mera constatação de que algo vai errado. Interessa a luta pela efetividade da atenção à saúde mental no Brasil. Interessa a consolidação de equipes multidisplinares, a efetivação da Reforma Psiquiátrica, a redução de danos, a porta aberta nos equipamentos, a defesa intransigente de uma vida digna e sem desigualdade social para todos os trabalhadores. Lutando, honramos Estamira e todos os seus irmãos e companheiros desconhecidos, que nunca estrelarão um filme mas que também querem visitar o mar.

Estamira! Mulher negra, resistente, trabalhadora!

Presente!

César Fernandes, psicólogo militante da luta contra os manicômios e pela construção do socialismo.

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