A experiência democrática no Brasil é uma ilha cercada de incompreensões por todos os lados. Natural, vez que somos sujeitos e testemunhas do maior período democrático em nossa história republicana e ele tem apenas pouco mais de 20 anos.
Todas as tiranias pretendem a supressão da pluralidade que caracteriza a agência humana e alimentam a loucura da uniformidade, do regramento capaz de impor, não raro pelo terror, a paz dos cemitérios. Os regimes ditatoriais e totalitários constroem, por isso mesmo, a experiência radical da solidão: a impotência absoluta. Incapazes de manifestar aquilo que os diferencia dos demais – opiniões, modos de vida, hábitos –os indivíduos se transformam em sombras de si mesmos. Em seu belo livro “Heróis Demais” (Cia das Letras, 240 pg.), Laura Restrepo conta a história de um filho à procura de seu pai, um ex-ativista de esquerda que lutou contra a ditadura militar argentina. Há uma passagem em que a mãe do menino, Lorenza, toma um ônibus em Buenos Aires, no auge da repressão. A personagem usava um vestido levemente transparente quando alguns senhores a insultam por conta da roupa. Percebe, então, que nenhuma ditadura se estabelece sem o moralismo que recusa aos demais o direito à diferença, inclusive nos modos de se vestir. As mulheres, é claro, são as primeiras vítimas deste “olhar normalizador” que chegou por aqui com os colonizadores, irmanados pelo que imaginavam ser a “palavra de Deus” e tementes do Santo Ofício.
Dom Luiz Gonzaga Bergonzini, bispo de Guarulhos, afirmou em entrevista recente que “não há verdadeiramente mulheres vítimas de estupro já que, em alguma medida, elas sempre consentem com o ato”. Para mostrar às mulheres que não devem abortar por conta do estupro, o Bispo usa em seu confessionário a “técnica da caneta”. Pega a tampa da caneta e solicita que a mulher enfie o cilindro na tampa. Então, movimenta a tampa impedindo o encaixe. Para ele, “uma mulher que não consente com o ato sexual resiste ao encaixe do cilindro na tampa da caneta”. Ao serem confrontadas com a “técnica da caneta”, as mulheres desistiriam do aborto, pois o estupro seria uma “mentira”.
Assim, ao invés do conforto, o Bispo de Guarulhos oferece às vítimas a noção de culpa. Não deixa de ser impressionante que o espírito da Inquisição seja tão presente entre nós e que pessoas como este Bispo – protegidos pelo manto da Igreja – reinventem a tortura, agora no confessionário. Que ele imagine uma vagina como uma tampa de caneta é até compreensível, já que, em tese, bispos não devem ter a menor noção deste tema; mas que erga sua ignorância e sua carga de preconceitos contra as mulheres, vitimando-as uma segunda vez, me parece algo repugnante. Mulheres vítimas de estupro são, freqüentemente, paralisadas pelo terror. A agressão é tamanha e a humilhação é de tal ordem que não se pode exigir das vítimas qualquer tipo de conduta. Mulheres violentadas estão à beira da morte, por definição. Morte do corpo transformado em um objeto – um pedaço de carne para a sanha do agressor - e mortificação da “alma”; vale dizer, de sua dignidade. É em favor da morte destas mulheres e ao lado dos estupradores que o Bispo de Guarulhos atua. Pior: há quem concorde com ele.
Fonte : Marcos Rolim - Direitos Humanos e Segurança - TORTURA NO CONFESSIONÁRIO
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